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    2 Dezembro, 2013

Há fruta ou chocolate, olha a batatinha, entoava o homem dos gelados e da batatinha. O recém-chegado procurou um lugar para se sentar. Na areia não lhe apetecia nada, não era só o sujar o fato, era sobretudo o desconforto, a posição. E com que lhe custara aceder à praia, bem podia agora estar confortável. Alberto perguntou ao concessionário se o aluguer da cadeira já estava incluído no preço de entrada, e o concessionário respondeu sim, mas que com sombra eram mais tantas patacas. Apesar de achar um descaramento, Alberto lá puxou da carteira e tirou um par de notas. Já que pagava, ao menos que tivesse o conforto adequado. Com o que ele não contava era que o concessionário (chamem-lhe parvo) fosse aproximando as cadeiras cada vez mais umas das outras à medida que mais pessoas chegavam. E só não estavam mais encavalitadas por causa do banquinho ao lado de cada uma, para pousar as bebidas ou o cinzeiro. Embora não se conhecessem, os clientes estavam ali unidos por uma excitação comum, e Alberto rapidamente reparou que era mais fácil meter conversa do que evitá-la.

– Isto não devia já ter começado?

– Estava anunciado para as 13.

– Tem a certeza?

– Ó minha senhora, a mim pareceu-me.

– O senhor por acaso não tem aí o programa?

Não, Alberto não tinha.

– Ou sabe onde vendem?

Não, Alberto não sabia. Podiam perguntar ao concessionário, e Alberto tentou fazer-lhe sinal, mas o homem estava ocupado a buscar mais cadeiras desdobráveis. Onde as iria pôr, era outra questão. A praia já era quase um mar de cadeiras. Alberto esticou o pescoço. Havia mais concessionários, mas para qualquer dos lados era igual: filas e filas de cadeiras de recosto ao longo da praia, voltadas para a água, à espera do início do show. Quantas pessoas estariam ali? Milhares, sem dúvida. Dezenas de milhar. Talvez mais ainda. Como contabilizar as cabeças – e as cadeiras? Pensando num daqueles megafestivais tipo Rock in Rio, e multiplicando por dez? Por vinte? Afinal, o palco era o mar, o mar era o palco, era lá que ia acontecer o show. Não seria portanto impróprio nem hiperbólico dizer que o palco era da largura de um mar. Porque o era. Da largura do oceano, ou desta costa deste oceano. Por ficar perto da capital, a Costa da Caparica era uma plateia privilegiada, mas no Meco ou no Cabo Espichel ou mesmo em Porto Côvo também se poderia assistir, segundo anunciado. Só que aí uma pessoa teria de mesmo de ir de carro, porque com os cortes e a racionalização dos transportes tinham acabado com a camioneta – o número de passageiros não compensava.

– Olha a bandeirinha! Olha a bandeirinha!

– A quanto está a bandeira?

– As maiores são tantas patacas.

– Apre! Eu sou patriota, mas isso é um roubo.

– As mais pequenas custam menos.

– Quantas patacas?

E o vendedor de bandeirinhas lá dizia. E algumas pessoas lá compravam, achavam graça a ter a bandeira na mão, para acenar. Ou então para, de forma subconsciente, chatearem o parceiro do lado ou estragar a vista ao de trás. Sim, Schadenfreude continuava a ser uma palavra alemã, uma palavra com sentido preciso (o de “satisfação pelo azar do outro”), mas o seu pulsar tornava-se universal, sobretudo em tempos destes. Que diacho, uma pessoa tinha de encontrar um entretém – cadê o mal de ser a chatear o outro, ou a ver o outro tramar-se? “Antes a ele do que a mim”, reza o ditado, e os ditados têm a não despicienda vantagem de cristalizar um saber antigo, confirmado por muitas luas e muitos sóis e muita terra a girar sempre com a mesma corda. Ainda assim, havia ali naquela praia – naquele concessionário, pelo menos – um certo ambiente de comunhão. Afinal, só ali estava, em lugar VIP, quem tinha ainda as patacas suficientes para pagar a entrada e o aluguer da cadeira. Os que nada tinham nos bolsos quedavam um quilómetro ou mais atrás, no cimo da falésia. Alberto riu-se, vendo ao longe a falésia apinhada de pontos negros, e podia imaginar a confusão que não iria para ali, todos a debruçarem-se para tentar ver, a semicerrar os olhos, malta das barracas à mistura com os azarados que simplesmente tinham perdido o emprego e já tinham que apertar mais as economias. Gente que queria ver – a curiosidade não tem classe – mas que ia ver o quê, àquela distância da emoção? Ao seu lado também comentavam:

– É uma pouca-vergonha, devia ser proibido ver sem pagar.

– Enfim. Nós na plateia, eles no galinheiro.

– Depois eles não se queixem se a falésia desabar.

– Outro dia aconteceu, no Algarve.

– Pois. Eu também li.

– Esta gente não tem cuidado, nem higiene, e quer batatinhas.

Nós na plateia, e eles no galinheiro. Dava vontade rir, mas o riso não saía bem. Alberto sabia o que era. O nervosismo da antecipação.

– Mas então isto não devia já ter começado?

– É que é uma desconsideração.

– Estava marcado para que horas?

– Minha senhora, compreenda, é um fenómeno natural. Um fenómeno natural é difícil prever com precisão a que horas acontece…

– Então mas não é para isso que eles são pagos?

As pessoas iam tendo estas conversas, que se acabavam misturando com os pregões dos vendedores:

– Há fruta ou chocolate.

– Um folheto a explicar como vai a água fazer aquilo é que dava jeito…

– Olha a batatinha…

– Dizem que é a primeira vez em mais de duzentos anos.

– Olha a fartura…

– Em Portugal. Porque noutros países tem havido.

– Países mais desenvolvidos, claro.

– Quentes e boas. Quentes e boas.

– Olhe que nem por isso, parece que até na Tailândia…

– Olha a bandeirinha. Agora a metade do preço!

Um homem indignou-se com os saldos das bandeirinhas. Quer dizer, as pessoas que compraram atempadamente pagaram mais; já os indecisos, que deixavam sempre tudo para o fim, iam ser beneficiados e acarinhados e premiados pela sua inconstância?!

– Tal e qual como nas eleições.

– Olhe, só lhe digo, mais vale ser a amante do que a mulher.

– Queijadas de Sintra. Olha a queijadinha.

– À amante dão tudo. Já à mulher, é o que se sabe…

– É uma pouca-vergonha.

A praia estava nisto quando, de repente, uma voz excitada se sobrepõe a todas as outras:

– É agora! É agora!

Foi como um apagão coletivo. E todos se calaram, calaram e olharam. E viram. E não disseram o espantoso que era, e não disseram, mas foi como se dissessem, que a onda era ainda mais imponente do que tinha sido anunciado, ainda mais majestosa do que qualquer um dos que estavam sentados (ou deitados) nas cadeiras daquela praia podiam ter imaginado. Tinham dito que o fenómeno natural da onda gigante teria entre dez a vinte metros de altura. Engano. Esta onda era decerto maior que um prédio de vinte andares. Maior que o edifício do Sheraton em Lisboa. E parecia crescer ainda mais. E era silenciosa. E a plateia – a imensa plateia ao longo de quilómetros e quilómetros de praia – estava também silenciosa e boquiaberta e fascinada. Era uma enorme parede azul que avançava, uma muralha deslizante, e o silêncio com que o fazia era um silêncio do tamanho de um mar, do tamanho de um oceano, era um silêncio azul que agora, como as nuvens às vezes fazem, parecia encobrir o sol. Alberto só conseguia pensar: é incrível. É um espetáculo incrível. A onda gigante estava agora já a apenas uma centena de metros. Só quando as primeiras filas de cadeiras começaram a ser engolidas é que Alberto ponderou, sem ainda entrar em pânico, que se calhar alguém tinha calculado mal e, ao contrário do previsto, a onda não ia morrer na praia.

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