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    2 Dezembro, 2013

Os médicos bem o tinham avisado, mas como pode uma pessoa mudar de hábitos assim de um dia para o outro? Era quase o mesmo que pedir aos filhos que não andassem às turras, o que seria um milagre, mesmo tantos anos depois de crescidos. Fatal como o destino: até mesmo na consoada acabavam a implicar um sempre com o outro e a coisa redundava em berraria, a mãe a interpor-se entre os dois com o frágil argumento: “Por amor de Deus, façam as pazes. Se não for por vocês, ao menos que seja pelo vosso pai. Olhem o coração dele.”

E aqui estava o coração – o coração dele – a dar as últimas, logo em véspera de Natal. De certo modo era bem feita; quem o mandara guardar as compras para a última hora? E em cada loja era uma confusão, os brinquedos para os netos, que nem tinha a certeza de ir ver (o filho mais velho estava em processo de divórcio). E agora, na charcutaria, só para os espumantes era uma fila enorme… Quanto às rabanadas e às filhozes, já tinham quase todas voado. O coração falhou precisamente quando viu a travessa das filhozes vazia; por um instante ninguém ligou, estava cada um concentrado na sua vez. Por fim uma alma caridosa lá disse: “Ó amigo, magoou-se? Quer que o ajude a levantar?”

Mas ele já estava para além de qualquer ajuda.

***

As pessoas ingénuas dizem que, quando uma pessoa morre, é como se saísse do corpo mas ainda continuasse vestida. E sabem que mais? As pessoas ingénuas têm razão: é mesmo assim. E foi vestido como estava no momento da morte, com a gravata, a camisa, o casaco de malha por baixo do casacão grosso, de Inverno, que ele se apresentou a São Pedro, lá no Céu. Sim, no Céu, porque tinha sido um homem bom ao longo da vida. Tradução: um homem que, feitas as contas, fizera mais bem do que mal. A fila lá em cima não era tão grande como nas lojas em baixo, e ele supôs que isso se devia ao facto de quase toda a gente ter a sensatez de não morrer de um enfarte de miocárdio logo na véspera de Natal.

Foi talvez a noção da sua tontice que lhe deu coragem para fazer a São Pedro o que, decerto, era um pedido tão atrevido quão despropositado. Mas ele  sentiu que tinha algum direito em o fazer. Afinal nunca pedira nada para si, apenas para os filhos. Tinha sido sempre um bom cidadão, um bom marido, nunca fizera grande mal a ninguém. Isso devia contar para alguma coisa, não?

Um favor. Era tudo quanto pedia. Um pequeno favor. Se não em nome dele, pelo menos em nome do espírito de Natal.

***

“Não sei”, murmurou São Pedro, abanando a cabeça. “É muito irregular.”

“Eu sei”, admitiu ele. “O São Pedro não julgue que eu não sei…”

“E depois”, prosseguiu o santo porteiro, “o que aconteceria se toda a gente fizesse pedidos desses?”

“São Pedro”, disse o homem, colocando a mão no coração (ou onde antes tivera o coração). “Nunca pedi nada a ninguém. Nunca enganei a minha mulher, embora por vezes ela o merecesse. Toda a vida paguei os meus impostos, eduquei os meus filhos o melhor que pude e gostaria que, ao menos uma vez, eles fizessem as pazes durante o Natal. Eu…”

São Pedro sorriu. As pessoas julgavam sempre que o podiam enganar. Não era por mal, era apenas a natureza… humana. E este homem nem sequer estava a mentir muito. Era verdade que nunca fugira aos impostos, mas como podia ele, se toda a vida tinha sido funcionário público? Assim, cometia um pecado de vaidade, ao gabar-se de uma virtude pela qual não tinha mérito. Quanto à fidelidade à mulher… Bem, aí São Pedro dava-lhe o devido desconto, não só porque talvez ele não estivesse mesmo recordado daquela vez mas também porque (aí São Pedro dava a mão à palmatória) a mulher naquela época estava de facto a pedi-las. E que ele era bom pai, disso não havia dúvidas.

São Pedro estava indeciso. Poderia enviar o homem de volta, nem que fosse por um curto lapso de tempo? Muito irregular, muito irregular…

“Só por umas horas, São Pedro”, implorou o homem. “Por esta noite. Amanhã morrerei de bom grado, prometo. Mas esta noite… não gostava de estragar o Natal à minha família. Um dos meus filhos acabou de se divorciar. E a minha mulher leva muito a sério esta coisa do Natal, o nascimento do Menino, a festa da família…”

São Pedro cofiou a santa barba. Afinal de contas, porque não? Para que servia ter as chaves do Paraíso se não fosse para, de quando em quando, fazer o que lhe desse na bolha?

***

O homem nem queria acreditar, mas estava de novo no seu corpo. Não tivera o enfarte na charcutaria. São Pedro cumprira a promessa.

Quando chegou a casa, já todos lá estavam. A mulher admoestou-o pelo atraso mas ele percebeu que era mais ternura do que azedume. E o filho mais velho conseguira trazer os netos. Congratulou-se por ter comprado os presentes para eles. Sentaram-se ao seu colo e pediram-lhe que contasse uma história. Pensou contar esta, a sua, mas depois achou melhor contar outra.

Houve, claro, alguns momentos de arrelia. Pode lá haver Natal sem momentos de arrelia! O filho mais velho sugeriu que o mais novo era um falhado, por ainda não ter encontrado a mulher certa, e o mais novo respondeu à letra, lembrando que ele ao menos não estava separado da mulher. Pegaram-se mas depois acalmaram-se. Fiéis ao espírito da quadra, fizeram as pazes.  A mãe ficou aliviada por desta vez nem ter de dizer: “Olhem o vosso pai, olhem o coração dele!”

“Meus queridos filhos”, disse ele. “Nunca esqueçam que são o fruto do amor entre mim e a vossa mãe. Vocês são e serão sempre o nosso amor, são o melhor do nosso amor. Sejam pois amigos. Quem sabe se este não é o último Natal que estamos juntos? Sejam amigos.”

Foi uma santa noite. O homem sorriu: no dia seguinte voltaria ao Céu, enfim,  era a sua sina. Mas ao menos não impusera, logo nesta noite, uma dor desnecessária à sua família.

***

Regressado ao Céu, agradeceu humilde a São Pedro. “Obrigado, estou pronto para entrar agora.”

E São Pedro deixou-o entrar.

***

Quando lhes telefonaram da charcutaria, foi um choque. E agora? Era véspera de Natal, e nem se deram ao trabalho de procurar uma agência que tratasse do corpo. Fizeram a vigília na capela do hospital, só entre eles. Não fazia sentido, logo nesta noite, avisarem mais ninguém. Para quê chatear as pessoas? A mãe estava naturalmente inconsolável. Ainda por cima era a primeira vez que o filho mais velho estava sem as crianças – a mulher, cabra, insistira em levá-las com ela. Talvez por isso ele tenha reagido com tanta veemência quando o irmão lhes apareceu completamente bêbedo, de braço dado com uma flausina, um enorme bolo-rei na mão. E preparava-se já para assestar um soco no impertinente quando a mãe lhe implorou que não fizesse caso. Ele aquiesceu, compreendendo que o irmão mais novo estava apenas a tentar esconder a dor. Então, num estranho impulso, ele próprio foi a casa buscar duas garrafas de Raposeira que por lá estavam abandonadas.

Brindaram e, como que por milagre, ao fim de um bocado até já a mãe ria, entre lágrimas, ao lembrar episódios ternos, ridículos, caricatos, da sua vida com o marido. Os filhos escutavam-na, abraçados como há muito tempo – desde que eram pequenos – não faziam. E a namorada do segundo olhava para este e para a sua louca família com uma chama e uma intenção inusitadas.

“Vocês estão em paz”, disse por fim a mãe. “E o vosso pai também estaria se vos pudesse ver.” Uma lágrima escorreu-lhe rosto abaixo. Limpou-a e sorriu: “É estranho”, acrescentou. “Não sei porquê, sinto que está aqui connosco. Sou muito tonta, não sou?”

Os filhos, e a flausina futura mãe dos filhos do mais novo, abraçaram-na.

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